Existe uma sociologia weberiana?
Publicado na revistacult.uol.com.br
Independentemente
da resposta, a influência de Weber ultrapassou seus próprios cálculos e
merece uma reflexão sobre o emprego legítimo de expressões como
“weberianismo”
Michel Misse
Embora
seja usual falar-se de uma sociologia “weberiana” e de sociólogos
“weberianos”, ou de uma escola “weberiana”, não podemos aceitar
rigorosamente essas classificações, a não ser quando se pretende
demarcar uma tendência dominante, em certos autores e obras, da
influência de conceitos e perspectivas desenvolvidas nos diferentes
trabalhos de Max Weber. Mesmo assim, não há nada, nesse caso,
comparável, por exemplo, seja à apropriação e desenvolvimento das
teorias de Marx no marxismo, seja à apropriação e desenvolvimento das teorias de Freud na psicanálise.
Não há nada na obra de Weber que permita desenvolvimento similar ao
marxismo e à psicanálise, e isso por duas razões: a) Weber não propõe
uma revolução científica ou um deslocamento teórico fundamental, um novo
paradigma científico, e nem foram esses os efeitos epistemológicos de
sua obra, como, ao contrário, parece acontecer com as obras de Marx e
de Freud (tal, pelo menos, como reivindicam marxistas e psicanalistas).
O próprio Weber condenava, no marxismo e na
psicanálise, sua unilateralidade radical, que os lançava, em seu
entender, na metafísica e na disputa de pressupostos últimos que a
ciência não poderia responder; b) Weber reivindica a tradição acadêmica
e científica da pesquisa histórico-social de seu tempo, mesmo quando
de sua contribuição original para essa ciência, a sociologia, que
também se desenvolve, independentemente de sua obra, e a partir de
outros paradigmas, em outros lugares. Ainda que proponha métodos e
conceitos suficientemente abrangentes e rigorosos para entronizá-lo
como fundador de uma escola, sua obra não produziu
influência dessa maneira, mas de outra, mais difusa, e também mais
coerente com o sentido que a distinguia das demais.
Weber
não formou uma escola, como aconteceu com Marx e Freud, e mesmo com
Durkheim. Não teve discípulos diretos, com os quais precisasse retificar
constantemente o desenvolvimento do seu próprio paradigma. No entanto,
é indubitável que no desenvolvimento da sociologia, tal como vem se
realizando desde o início do século, a contribuição weberiana é
decisiva, fundamental mesmo, por demarcar um de seus principais
paradigmas. Curiosamente, embora Durkheim tenha uma posição análoga a de
Weber por ter também contribuído com outro paradigma fundamental, e ao
mesmo tempo divergente da dele, não é usual falar-se atualmente de
sociólogos “durkheimianos” ou de uma sociologia “durkheimiana”, e isso
quando se sabe que a influência de Durkheim foi mais sistemática que a
de Weber, a ponto de ter existido uma “escola durkheimiana” na França, o
que nunca ocorreu com Weber, nem mesmo na Alemanha.
A
influência da obra de Weber, embora crescente ainda quando ele estava
vivo, não era do tipo que possibilitasse uma escola. Mesmo essa
influência foi drasticamente interrompida, na Alemanha, doze anos após a
sua morte, pela chegada dos nazistas ao poder. Suas principais obras,
com exceção de A ética protestante, permaneceram esgotadas e
sem reedições durante quase vinte anos, e em grande parte espalhadas em
revistas e periódicos de pouco acesso ao público não-germânico. Apesar
disso, sua influência foi decisiva em obras que foram publicadas antes
da Segunda Guerra, algumas das quais vieram conformar grande parte do
quadro atual da sociologia. Entre essas obras, basta citar Ideologia e utopia, de Karl Mannheim; História e consciência de classe, de Georg Lukács; Estrutura de ação social, de Talcott Parsons; e Fenomenologia do mundo social, de Alfred Schutz.
O weberianismo como contra-senso
Desde
aqui já se pode notar a abrangência e o tipo de influência que a obra
de Weber começará a exercer. Nenhum desses trabalhos é “weberiano” e,
no entanto, todos estão numa relação fundamental com a obra de Weber;
em todos eles, também, a posição weberiana é posta em situação de
interlocução, de diálogo com outros pensadores-chave; Lukács e
Mannheim, de modo diferente e pesos desiguais, põem Weber em relação com
Marx, e daí destilam suas contribuições originais; Parsons põe Weber
em relação com Durkheim e Pareto; Shutz coloca Weber em relação com
Husserl. Para cada uma dessas posições, enfatiza-se um aspecto da obra
de Weber. Pode-se dizer que são Webers diferentes os que saem dessas
posições: um Weber subsumido no marxismo hegeliano de Lukács; um Weber
que retifica e modera Marx, na sociologia do conhecimento de Mannheim;
um Weber fenomenológico, intuicionista, neo-idealista, na “síntese” de
Shutz. No campo substantivo da influência, a abrangência e a variedade
não é menor. A Ética protestante é o rosto mais badalado da
influência, mas não é nem a principal nem a mais duradoura, apesar de
ter produzido um dos grandes veios polêmicos do século. Weber trabalhou
sobre campos extraordinariamente diversos e sua influência acompanha
essa diversidade, que vai do Direito à Sociologia da Música, da História
Econômica à Sociologia das Religiões, da Filosofia da Ciência à
Política alemã. Conceitos como “tipo ideal”, “ação social”,
“compreensão”, “autoridade”, “dominação”, “carisma”, “vocação”,
“racionalidade”, “burocracia”, “estamentos”, “legitimidade” e muitos
outros, estão inteiramente orientados, na sociologia contemporânea, pela
influência de Weber. O peso das interpretações pioneiras de Weber, em
especial, pela sua influência sobre toda a sociologia acadêmica
mundial, aquela que veio da obra de Talcott Parsons, vem passando por
ampla reavaliação crítica há quase cinco décadas. Os resultados dessa
reavaliação, que incluiu um renovado interesse dos marxistas pela sua
obra, têm possibilitado – quase noventa anos após a sua morte – o
conhecimento de um Weber muito mais profundo e contemporâneo do que as
primeiras interpretações poderiam fazer supor. Não é exagerado afirmar
que sua influência, hoje, é comparativamente mais abrangente, mais
sistemática e mais rigorosa do que em sua própria época ou qualquer
outra, não obstante manter sua característica de não formar escola. O
propalado “weberianismo” é um contra-senso com a própria perspectiva
científica de Weber, e o próprio Weber testemunha contra esse equívoco:
“Na ciência, sabemos que as nossas realizações se tornarão antiquadas
em dez, vinte, cinqüenta anos. É esse o destino a que está condicionada
a ciência: é o sentido mesmo do trabalho científico… Toda realização científica suscita novas ‘perguntas’: pede para ser ‘ultrapassada’ e superada. Quem deseja servir à ciência tem de resignar-se a tal fato”.
A
influência de Weber, apesar disso, ultrapassou seus próprios cálculos e
merece uma reflexão porque é isso que ainda legitima o emprego de
expressões como “weberianismo”. A ciência social carrega a bendita
maldição filosófica de sua origem: a política. E como a filosofia e a política, o marxismo e a psicanálise, a sociologia precisa
desenvolver-se renovando sempre suas relações teóricas com seus
pais-fundadores: a reinterpretação das obras clássicas acompanha e
indica esse desenvolvimento, tanto quanto os avanços obtidos nos campos
substantivos (empírico e teórico). Não é impossível escrever-se uma
história da sociologia a partir da sucessão da reinterpretações de seus
clássicos. Essas reinterpretações são tão inesgotáveis quanto sua
tendência para avançar para além do que estava originalmente escrito,
conferindo-lhe uma nova dimensão, só possível pelo avanço substantivo
efetivamente realizado. O que define uma obra como “clássica” é
exatamente isto: manter-se contemporânea.
A influência disseminada
Talcott
Parsons, cuja obra dominou a sociologia norte-americana por mais de
duas décadas (1950-1960) e exerceu – e ainda exerce (embora declinante)
– influência sobre toda a sociologia acadêmica mundial, travou contato
com a obra de Weber ainda nos anos de 1930, na Alemanha. Sua tese de
doutoramento versava sobre o conceito de capitalismo em Weber e
Sombart, o que lhe permitiu preparar o terreno teórico sobre o qual
desenvolveria, em 1937, uma original tentativa de síntese sociológica, a
primeira elaboração de sua teoria geral da ação. O livro, um grosso calhamaço de mil páginas, intitulado Estrutura da ação social,
dedicou quase um terço dessas páginas à interpretação parsoniana de
Weber. No entanto, sua apropriação de Weber caracteriza-se pela ênfase
posta sobre as normas e valores sociais, em função de
sua preocupação em construir as bases de uma teoria da integração
social. Se isso lhe permitiu aproximar Weber de Durkheim muito mais
facilmente do que é efetivamente possível, facilitou, no entanto, uma
apropriação da obra de Weber, nos Estados Unidos, que além de incorreta e
problemática, enfatizava excessivamente sua utilização conservadora.
No entanto, a influência de Weber na sociologia norte-americana, até
então pequena, pegou carona no funcionalismo parsoniano e cresceu, até
que no final dos anos de 1960 a revisão interpretativa de suas
contribuições começasse a ser feita, resgatando-o contra Parsons.
Quanto a isso, o pioneiro foi C. Wright Mills, cuja obra reflete uma
influência weberiana bastante diferente daquela encontrável em Parsons e
sua escola.
Se
Parsons procurou aproximar Weber do funcionalismo durkheimiano, Wright
Mills fez a aproximação com a tradição marxista, extraindo daí não só
uma interpretação, mas um efeito – em suas próprias obras – crítico e
politicamente renovador. Mills foi praticamente uma voz isolada numa
América conservadora e exposta ao maniqueísmo da guerra-fria, e uma voz
que se calou precocemente (Mills morreu aos 47 anos, em 1961). Apesar
disso, sua influência na renovação anti-parsoniana da sociologia
norte-americana dos anos de 1970 deveu-se, em grande parte, à extração
marxista de sua apropriação de Weber, que lhe permitiu enfatizar, ao
contrário de Parsons, os conceitos de classe, de interesse e de conflito.
No entanto, ao contrário daquele, Mills jamais tentou uma
sistematização conceitual que lhe permitisse construir uma abordagem tão
abrangente quanto a parsoniana. Por isso, sua contribuição terminou
confinada à sua época.
Lukács,
o grande pensador marxista, freqüentou assiduamente o “Círculo de
Heidelberg”, que se reuniu na casa de Weber por quase uma década. Nos
dois últimos anos da vida de Weber, quando já se tornara marxista,
Lukács, ainda sob sua influência, redige alguns dos trabalhos que irão
compor seu livro mais célebre. Além de abundantes referências aos
trabalhos de Weber, Lukács promove uma inusitada aproximação marxista
com a problemática weberiana da “racionalização”, cuja influência
posterior não deve ser negligenciada. Mannheim, que foi chamado de
“marxista burguês” e de weberiano “marxista” (sic), escreveu suas
principais obras entre a década de 1920 e a de 1940. Sua influência,
particularmente no campo da sociologia do conhecimento, é decisiva, e
tão mais quanto sua pretensão era a de construir uma ponte entre Weber e
Marx que resolvesse algumas das antinomias postas por essa relação.
Sua influência sobre Mills permitiu a este se apartar da todo-poderosa
interpretação parsoniana de Weber. Do mesmo modo, sua obra permitiu aos
funcionalistas manter uma porta aberta ao marxismo (pelo menos nessa
área de “sociologia do conhecimento”), como no estudo de Robert K.
Merton sobre sociologia da ciência.
No
pós-guerra, a influência de Weber se alastra na Europa e na América.
Raymond Aron, na França, forja o conceito de “sociedade industrial” e
se apóia em Weber para criticar o marxismo. Ralf Dahrendorf, na
Alemanha, sob forte influência weberiana, revisa o conceito de classe
e, como Aron, substitui capitalismo por “sociedade industrial”, para
enfatizar a dimensão mais abrangente (principalmente política) dos
conflitos sociais do capitalismo tardio. A sociologia inglesa renova-se
com a influência de Weber, principalmente nas obras de John Rex, J.
Goldthorpe, David Lockwood, Frank Parkin e Anthony Giddens. Na França,
Michel Crozier e Alain Touraine estudam a burocracia e a classe
trabalhadora em aberto diálogo com as hipóteses weberianas, e Pierre
Bourdieu reinterpreta Weber em seus trabalhos de sociologia da
cultura.
Apesar
da forte influência de Parsons, a sociologia norte-americana
reencontrou Weber de diversas maneiras, desde o pós-guerra até agora.
Obras muito importantes como as de Seymour M. Lipset, Reinhardt Bendix,
Robert Bellah, Clifford Geertz, Randall Collins e S. Eisenstadt, entre
outros, foram desenvolvidas em constante recuperação e reinterpretação
das hipóteses weberianas. Tendências que aparecem na época da Guerra
Fria, como a sociologia fenomenológica, a etnometodologia, a sociologia
radical, o interacionismo simbólico, retomam Weber exatamente aonde
Parsons o havia recalcado: no seu “idealismo”, na sua “sociologia
compreensiva” e nas minuciosas questões metodológicas.
Em
compensação, o “materialismo” de Weber é recuperado pelo marxismo do
pós-guerra, que antes lhe havia reservado a indiferença dogmática ou o
ataque superficial. Essa indiferença não existira nos clássicos do
marxismo, mas tornou-se dominante no período stalinista. Kautsky,
Bukhárin, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Lukács e Max Adler citam Weber e
quase sempre em apoio às suas próprias idéias. Mas o conhecimento da
obra de Weber era ínfimo, se comparado ao que os marxistas
contemporâneos passam a ostentar a partir dos anos 1960. A influência de
Weber na Escola de Frankfurt é reconhecida e bastante significativa,
principalmente na obra de Habermas. A crítica superficial foi abandonada
e o rigor com que muitos marxistas reavaliam a obra de Weber não fica
nada a dever ao ostentado pelos “weberianos”.
Uma
verdadeira história das reinterpretações de Weber e de suas disputas
teria, agora, que descer ao campo temático e conceitual. Acompanhar a
disputa dos conceitos, a detecção de suas ambigüidades originais, o
aparecimento de novos problemas sobre os escombros de problemas que
pareciam resolvidos, enfim, teria de ser uma história da constante
reatualização de Weber, como a feita brilhantemente por Wolfgang
Schluter nas últimas décadas. Aqui entrariam, por exemplo, a penetrante
e nem sempre admitida influência de Weber sobre as obras seminais de
Norbert Elias e Michel Foucault, apenas para citar dois nomes que
continuam em evidência. Naturalmente, isso não pode ser feito aqui. De
qualquer modo, será feito por cada sociólogo, em sua área específica de
atuação. Isto será inevitável sempre que se descobrir que o sociólogo
“weberiano” se dedica a uma coisa “que na realidade jamais chega, e
jamais pode chegar, ao fim”.
Michel Misse é professor de sociologia e coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, da UFRJ
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